Obra de arte de João Evangelista. Todos os direitos reservados / imagem emprestada para o uso exclusivo deste artigo. |
Melissa Telles Barufi[1]
Jamille V. Dala Nora[2]
“Essa criança vivia na ausência de afeição
como as ervas daninhas que nascem nas covas”
(Victor Hugo)
O Brasil é um país que demonstra preocupação na defesa da proteção integral de crianças e adolescentes desde 1988, quando assumiu o compromisso antes mesmo da aprovação da Convenção das Nações Unidas. Desde lá, então, as crianças, os adolescentes e os idosos passaram a receber tratamento prioritário pelas legislações pós-constituintes. “A nova ordem constitucional elucida o compromisso do Brasil com a doutrina da proteção integral, assegurando às crianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direito, pessoas em desenvolvimento e prioridade absoluta”, em razão de sua condição de maior vulnerabilidade. Assim, o artigo 18, do Estatuto da Criança e do Adolescente, afirma que “é dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”[3].
Entretanto, apesar de uma legislação que visa a proteção integral, a realidade, muitas vezes diversa, demonstra que a criança e o adolescente continuam expostos a distintas formas de violência e maus-tratos. No que se refere a esse tema, a pior de todas as realidades é o fato de que os mais próximos se tornam os maiores abusadores. A violência doméstica, nesse sentido, se torna a mais cruel, pois promovida por quem menos se espera e velada na intimidade do lar[4].
Porém, não é só a Lei que está à disposição para proteger estes entes vulneráveis. Também há a conhecida rede de proteção, que vem cada vez mais ganhando destaque através de políticas públicas, para que os abusos sejam diminuídos ou evitados. A rede consiste em uma ação conjunta e horizontal (sem hierarquia) entre instituições governamentais e não-governamentais para prevenir e proteger crianças e adolescentes contra quaisquer tipos de violência.
Mas de quem é a responsabilidade quando uma criança de 11 anos pede socorro para toda a rede de proteção e não é atendida? Bernardo[5] não recebeu o mínimo de proteção integral à qual fazia jus, nem mesmo quando demonstrou ser tímido, retraído e triste. Não bastou que toda a sociedade soubesse que ele sofria abandono por parte de seus cuidadores para alguém pensar que ele pudesse estar em sofrimento e, por este motivo, unicamente, já deveria estar recebendo proteção especial. Quando algum direito fundamental é infringido, “cria-se o terreno propício às diversas formas de violência, especialmente contra as populações mais vulneráveis” [6].
Conforme afirmações promovidas por profissionais atuantes no caso acima, amplamente divulgadas nas mais diversas mídias, veiculou-se que não haveria indícios suficientes de que o menino corria risco de sofrer agressão física e que, por esse motivo, ações visando sua proteção integral não sugeriam urgência. Tal conduta estabeleceu um perigoso critério de avaliação, na medida em que negligenciou-se o efeito da violência psicológica que culminou no mais grave ato de agressão física. É lastimável, portanto, que ainda vivamos na escuridão quando o assunto é a violência psicológica.
A proteção integral para ser alcançada, necessita, primeiramente, de um olhar estritamente cauteloso. Os que fazem jus à proteção integral são sujeitos que não conseguem agir sozinhos para a sua sobrevivência, considerando que “os atributos da personalidade infanto-juvenil têm conteúdo distinto dos da personalidade dos adultos”[7], e trazem uma carga maior de vulnerabilidade, autorizando a quebra do princípio da igualdade. Enquanto os primeiros estão em fase de formação e desenvolvimento de suas potencialidades humanas, os segundos estão na plenitude de suas forças.
É prescindível que, pelo menos os entes atuantes na rede de proteção, conheçam e estejam capacitados para atuarem frente às inúmeras formas de violência e maus-tratos que são praticados contra os sujeitos que estão sob a proteção integral, pois toda violência deve receber visibilidade. Do mesmo modo, é gritante a necessidade de descortinarmos de uma vez por todas que a maior violência é cometida dentro do próprio lar: a violência doméstica.
Concluindo, este texto visa alertar sobre a violência que está invisível aos olhos, que é a violência psicológica. Essa é caracterizada como “[...] atitude do adulto em depreciar e inferiorizar de modo constante a criança ou o adolescente, causando-lhe sofrimento psíquico e interferindo negativamente no processo de construção da sua identidade”, (MALTA, 2002. p. 47). Essa modalidade de violência pode se dar tanto na forma de ação, quanto na forma de omissão. A violência psicológica apresenta-se de diferentes formas, sendo elas: “superproteção, permissividade, isolamento, corrupção, humilhação, tortura psicológica, exigências extremadas e rejeição” (Id Ibid, p. 49, passim).
Deixamo-os ao final com as palavras de Antoine de Saint-Exupéry: “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer”[8].
[1] Advogada, Vice-Presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM, Secretaria-Geral da Comissão Especial do Jovem Advogado da OAB/RS, Presidente do Instituto Proteger.
[2] Advogada, Secretária-Geral Adjunta da Comissão Especial do Jovem Advogado da OAB/RS, Diretora Jurídica do Instituto Proteger.
[3] AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A criança vítima de violência sexual intrafamiliar: como operacionalizar as visitas. in: DIAS, Maria Berenice. (coord.). Incesto e alienação parental: realidades que a justiça insiste em não ver. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
[4] AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A Criança vítima de violência Sexual Intrafamiliar apud GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de pais contra filhos: a tragedia revistada. 3 ed. Sao Paulo: Cortez, 1998. In: DIAS, Maria Berenice. Incesto e Alienação Parental - realidades que a justiça insiste em não ver. 2 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 308.
[5] Bernardo foi o menino assassinado pela madrasta – já confessado, e supostamente pelo próprio pai em abril de 2014 na cidade de Três de Maio, RS. Resumo do caso disponível em: [http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/09/
as-falhas-na-rede-de-protecao-que-nao-salvou-bernardo-boldrini-4608042.html]. Acessado em: 27.09.2014.
[6] AZAMBUJA, Maria Regina Fay. Inquirição da criança vítima de violência sexual: proteção ou violação de direitos?, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 59.
[7] AZAMBUJA, Maria Regina Fay. Violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança: A quem compete produzir a prova? Disponível em: [http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteu
do.php?conteudo=1449]. Acesso em: 27.09.2014.
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